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  • Walmir de Albuquerque Barbosa

Crônicas do cotidiano: “A Amazônia como paisagem”.

“Essa transmissão de olhares tem, para cada um de nós, a potência da origem, aqui o sonho de minha mãe, ali o rio de margens tranquilas, seu sinuoso curso ensolarado, acolá um texto, uma sequência de filme, o desenho das nuvens. A natureza como paisagem se dá pelo olhar dos outros, quando a doadora, só com um movimento de mão, faz o gesto de desvelamento e inaugura aquilo que por um longo tempo será para nós o ‘real’”, parágrafo final da obra de Anne Cauquelin, p.191, em “Invenção da Paisagem”, editado pela Martins Fontes.

E por que começo assim? Há muito o tema me persegue. Buscando os livros que me ajudariam a falar da Amazônia, deparei-me com essa obra instigante sobre a estética. Dela reproduzi o último parágrafo acima, mas o que me levou a isso e me seduziu mesmo está à página 19, onde começa o estudo, contando pormenorizadamente a descrição feita pela mãe da autora, de uma casa idílica, de doces lembranças, enquanto acalentava a filha; e, assim, a autora começa a definir o que vem a ser o seu conceito de paisagem. Não sei por que, imediatamente, embarquei no tempo e fui tomado de sentimentos e lembranças da história contada por minha Mãe, narrando como se deu o seu nascimento, ocorrido nos idos de 1916.

Meu avô, um imigrante nordestino, “parteiro curioso”, deixou a terra natal e ganhou o mundo, rumo à “colocação” para trabalhar na extração do látex e produção da borracha. Numa “igarité” subiu o Rio Juruá, com a família dentro – ainda eram poucos. A certa altura do trajeto foi obrigado a encostar o pequeno barco ou, se quisermos, uma grande canoa, numa moradia do beiradão, para que a minha avó “desse à luz” à minha mãe. Já era um fim de tarde, por sorte, sem chuva e com poucos ventos, o que permitiu que chegassem ainda a tempo, pois o rio sinuoso fez meu avô perder-se em tantas curvas num quase nunca chegar. Minha mãe que estava prestes a nascer não foi testemunha dessa parte, mas ouviu da minha avó que, apesar das circunstâncias, ela sentiu-se segura com a perícia do marido parteiro e tudo aconteceu como deveria ser. Era a primeira filha a nascer no Amazonas, onde tudo, para a minha avó, parecia um mundo novo, com tanta água, com tanta mata e a esperança de dias melhores; e muitas estrelas, mesmo num céu de fevereiro, enfeitavam o céu e iluminaram a casa humilde que os recebeu e onde nasceu a menina, que cresceu e viveu, até os dez anos, no seringal de um senhor chamado Antônio Cândido.


Formado e jornalista profissional, fui fazer a cobertura de um evento para o jornal em que trabalhava na rota do Rio Juruá e pude contemplar aquele rio que de tão sinuoso parece que não deixa o viajante sair do lugar. Cheguei à Eirunepé, sede municipal à beira do rio, num avião Catalina da extinta Panair do Brasil, que amerissou em frente à cidade. Era como se minha mãe estivesse nascendo de novo naquele momento. O que vi de cima, acompanhando o curso do rio de mil voltas, com suas águas barrentas e que, de tão revoltas, arrancavam árvores inteiras da margem, mexeu com minha cabeça. O que se me apresentava era um outro cenário, mas o que me vinha aos olhos já estava pronto na minha memória: não era mais o rio nem a cidade de Eirunepé que eu via, e sim, a história que chegava aos meus ouvidos, narrada por minha mãe. Mais que um mapa mental, uma Paisagem!


A vida no seringal faz parte de outras histórias de labor insano, de parcos resultados, de consumição de vida e de desenganos. São histórias sem paisagem, porque apropriadas pelos senhores do capital se tornam folhas de um outro álbum, o da segunda natureza. As outras, encantadoras, mesmo sem o glamour dos contos de fada, fazem parte de um passado rosa, que gera paisagens na memória.

Autor: Dr.Walmir de Albuquerque Barbosa - Jornalista Profissional. Professor Emérito e ex-reitor da Universidade Federal do Amazonas. Manaus (AM), 25/06/2021.

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