Crônicas do cotidiano: “Angústia como prato principal”
“Vivemos, hoje, em um sistema neoliberal que desmonta estruturas temporais estáveis, fragmenta o tempo de vida e faz com que o vinculante, o vinculativo se desfaça, a fim de aumentar a produtividade. Essa política neoliberal do tempo produz angústia e insegurança. E o neoliberalismo separa seres humanos em empreendedores de si mesmo isolados. O isolamento, que caminha de mãos dadas com a falta de solidariedade e a concorrência total, produz angústia. A lógica pérfida do neoliberalismo anuncia: A angústia aumenta a produtividade” (Byun-Chul Han, “A expulsão do outro: sociedade, percepção e comunicação hoje”, p. 59-60, 2022).
A tarefa difícil de explicar filosoficamente a “angústia” deixemos para os heideggerianos competentes como Han, mas a sua constatação no rosto e no comportamento das pessoas é visível, observável. Atribuir tudo isso ao neoliberalismo pode até gerar discordância no todo ou em parte, mas essa coisa estranha que o modo capitalista de viver foi nos impondo, não resta dúvida, está nos arrastando para o abismo, e incomoda. Os intelectuais não encontram mais os referentes para os conceitos com os quais trabalham e, da mesma forma, nós em nossas práticas cotidianas.
Tudo que é relativo à classe social e vinculado a ela, seja material ou imaterial, desvinculou-se: a maneira de produzir as mercadorias e o modo de vida; os parâmetros de renda e a relação comportamental de uma classe em relação a outra; a violência do Estado e o apartheid. Onde está fábrica? Quem é seu dono? Ou seus donos? Onde estão os trabalhadores? O que é “emprego” e o que é “ocupação”? Quais as carreiras a seguir? Os cursos a fazer? Isso não era próprio do capitalismo nas fases anteriores, onde havia certa previsibilidade e planejamento de vida. Era bom? Era o satisfatório? Justo? Não! Mas a angústia não era a marca predominante daqueles momentos, que desaguavam na luta de classes como motor da transformação; hoje, ela foi vencida pelos dominadores do capitalismo financeiro global, invisível, máquina de moer humanos.
Na falta de referenciais tudo é fluido, tudo perde sentido gerando incertezas e trazendo os ingredientes dos quais resulta a angústia: as práticas violentas nos comportamentos individuais, que expulsam o outro, tornando-o um concorrente insuportável; os “nacionalismos”, que se encarnam nas práticas coletivas para reserva de territórios e de pseudo privilégios, e os que não são “nossos” são inimigos a serem exterminados ou cancelados; os ritos fundamentalistas, que dão a falsa impressão de predestinação salvacionista, com ética e pautas moralistas próprias para o triunfalismo mascarado; e, por fim, a exigência de produtividade extensa como prova de superação de todos os reveses da vida. Os “improdutivos” são tidos como fracos e os “fortes” são os predestinados ao sucesso, pelo esforço desmensurado de sua audácia, no jargão popular, “o vale tudo”.
Esse olhar de medo ante as máscaras dos “deuses do mercado”, que treinam mágicos “para irem e voltarem rapidamente das profundezas do inferno”; esse susto constante com a repetição do mesmo; essas ameaças diárias que solapam esperanças; essas receitas “milagrosas” de sucesso da autoajuda e dos “influencers” são sinais visíveis do que se pode chamar de “sociedade angustiada”, que abraçou o neoliberalismo e o burnout e não sabe mais como deles desvencilhar-se.
Estaríamos num beco sem saídas? Os determinismos têm demonstrado que nem sempre o mundo construído contêm certezas de uma equação matemática. As ilusões e crenças de um tempo nunca foram as ilusões e crenças de todos os tempos. Da mesma forma, os acertos que conhecemos, resultaram da capacidade de reflexão, de reconstrução de novos caminhos, coletivamente. Não é a primeira vez que o mundo se sentiu nessa encruzilhada, mergulhado na desesperança e afogado em angústias. Apostar no melhor é não aceitar o abismo de nós mesmos!
Autor: Dr. Walmir de Albuquerque Barbosa Jornalista Profissional. Professor Emérito e ex-reitor da Universidade Federal do Amazonas. Manaus (AM), 3/6/2022. *Toda sexta-feira publica no site EPCC suas Crônicas do cotidiano. Confira na obra" Trajetórias culturais e arranjos midiáticos" (2021) seu capítulo "Comunicação, Cultura e Informação: um certo curso de jornalismo e vozes caladas na Amazônia". Veja, também, sua entrevista no Programa Comunicação em Movimento 09 do grupo de pesquisa EMERGE- https://www.youtube.com/watch?v=kpu-HtV6Jws
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