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Walmir de Albuquerque Barbosa

Crônicas do cotidiano: “As palavras, a geografia e o poder”

A cidade do Rio de Janeiro, apesar das mazelas, ainda cheira a poder. Foi a Capital da Colônia do Brasil, do Vice-Reino, do Império e da República, até a sua transferência para Brasília. Mas, foi, também, o maior porto de desembarque e venda de escravos, que eram levados para Minas ou para os rumos de São Paulo. Em direção contrária, para ela convergiam os poderosos das províncias e os filhos das famílias abastadas. Os primeiros para “representarem” seus conterrâneos no Parlamento e os outros para virarem doutores, crescer na vida e usufruir a “mundanidade civilizatória” que os cronistas, desde Machado de Assis, passando por João do Rio e Antônio Maria, retrataram e os “influencers” de hoje “badalam” pelas redes sociais. Não é à toa que a Crônica, como gênero literário, é a cara do Rio na dinâmica de seu cotidiano, como modelo. A natureza vívida, desenhada pelo Criador, é admirável e tudo que se lhe põe em cima assume vida própria, sempre com uma camada de “purpurina”. Porém, esse monopólio da vanguarda, como tudo que é espetacular, guarda, igualmente, a tristeza do palhaço após o espetáculo, a pobreza e a dor dos que não tem nada e, sobretudo, esconde a arrogância dos que escapam da sua geografia estamental. Os que passam pela Cidade levam um sentimento de não pertencimento e os que para ela confluem de corpo e alma mergulham no seu caldo de culturas e novidades e engendram uma persona. O “carioca” nem sempre se vê assim; e muitos nem sabem que são produto de segundas gerações; filhos daqueles que foram ficando, fazendo a própria vida, como todo mundo, em qualquer lugar que escolhem para fincar raízes. Contudo, suas referências são históricas, agarradas ao fascínio da vida e do poder e de um certo descaso pelos “outros”, nos mais comezinhos dos contatos. Os bons, os indiferentes, moradores ou em trânsito, com esse modo de ser, são parte do caleidoscópio da “Cidade Maravilhosa” que, “vista assim do alto, mais parece um céu no chão” (Paulinho da Viola). Minha Mãe, amazonense, filha de nordestinos, de tanto morar no Rio de Janeiro, repreendia o meu irmão por ter arranjado uma namorada que morava a três dias depois de Cascadura. Mas é assim que o carioca se refere à sua geografia de Zona Sul e de Subúrbio. Da mesma forma que retrata os demais como “nortistas”, “caipiras” e “sulistas”. O “carioca” pensa ser um estado de espírito! E não por acaso, dias atrás, revisito o Museu da República, agasalhado no Palácio do Catete, a antiga morada dos Presidentes da República e constato que ali nada existe além de Juscelino Kubitschek, quando a sede do poder mudou-se para Brasília, “um subúrbio caipira do país, a três dias do Rio de Janeiro”. Já de saída do museu, deparo-me com um senhor vestido, parece-me, com a sua melhor roupa e que nos aborda perguntando se ali era uma Igreja e diz: “acabo de chegar da Paraíba e estou com fome, me ajudem!” Enquanto tentava dar-lhe alguns trocados, a moça da Portaria antecipou-se e sacou o interfone chamando o segurança e, ao mesmo tempo, energicamente, vociferava sua autoridade: “aqui é o Museu da República e o senhor não pode ficar pedindo nada a ninguém, afaste-se!”. Restou ao “nortista” de primeira hora, na sua braveza, “rogar uma praga” à funcionária, que se ouvida por Deus custar-lhe-á muito sofrimento. Pensei com meus botões: e para que serve a República se dela não temos o direito, ao menos, de pedir comida?! Por via das dúvidas, do Alto do Corcovado, aos pés do Cristo Redentor e longe da insegurança que ronda visitantes incautos nos “campos santos”, mirei o Cemitério “São João Batista”, onde estão sepultados meu pai e meu irmão e fiz as minhas orações, por eles e por todos que vieram de longe, do Brasil invisível e de além-mar, em busca de uma vida melhor.

Autor: Dr. Walmir de Albuquerque Barbosa Jornalista Profissional. Professor Emérito e ex-reitor da Universidade Federal do Amazonas. Manaus (AM), 9/9/2022. *Toda sexta-feira publica no site EPCC suas Crônicas do cotidiano. Confira na obra "Trajetórias culturais e arranjos midiáticos" (2021) seu capítulo "Comunicação, Cultura e Informação: um certo curso de jornalismo e vozes caladas na Amazônia".

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