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Walmir de Albuquerque Barbosa

Crônicas do cotidiano: Cara metade!

“Uma parte de mim/é todo mundo;/outra parte é ninguém:/fundo sem fundo./Uma parte de mim/é multidão;/outra parte estranheza/e solidão./Uma parte de mim/ pesa, pondera;/outra parte/ delira./Uma parte de mim/almoça e janta;/outra parte/se espanta./Uma parte de mim/é permanente;/ outra parte/se sabe de repente./Uma parte mim/é só vertigem;/outra parte,/linguagem./Traduzir uma parte/na outra parte/ - que é uma questão/de vida ou morte /será arte?” Como você faz falta, estimado poeta Ferreira Gullar (1930-2016)! No poema “Traduzir-se” (Na vertigem do dia, 1976), tão claramente você afirma nossa humanidade e, ao mesmo tempo, confirma nossa existência dividida, quer pela desigualdade, quer pela maldade que mutila as almas. Quase como síntese, logo depois de você, Chico Buarque de Holanda, em canção doída dedicada a Zuzu Angel (1921-1976), que perde um filho (Stuart Angel Jones) nas mãos sujas dos torturadores da Ditadura Militar, canta assim: “Oh, pedaço de mim/Oh, metade arrancada de mim/Leva o vulto teu/Que a saudade é o revés de um parto/A saudade é arrumar o quarto/Do filho que já morreu” (Ópera do Malandro, 1978). Esses dois poemas servem para nos colocar diante das “caras metades de nós”, que sofrem de todas as dores nestes dias terríveis: as causadas pela reação da natureza, que atinge, sobretudo, os que vivem nas encostas perigosas dos morros, afastados que foram das planícies para dar lugar aos que se deliciam com as fortunas herdadas, roubadas, ou acumuladas (de forma honesta ou pela desonestidade que os desvios de caráter permitem em nossa sociedade); as manifestas, nos corpos esquálidos dos Ianomami, arrastados do fundo das florestas - nossa humanidade ancestral -, vítimas da ganância do ouro, fincada no coração e nos atos criminosos dos garimpeiros, políticos desonestos e beneficiários, que ostentam essa ignomínia na forma de joias pendurada como adorno em seus corpos ou guardadas como fortuna nos cofres dos bancos; as dores diárias do povo pobre, que amanhece nas portas dos Institutos Médicos Legais (IMLs) para identificar os filhos abatidos pelas balas “perdidas” (certeiras) de policiais, milicianos e desportistas caçadores de humanos, psicopatas a serviço de interesses escusos ou seres cruéis mesmo.


A nossa humanidade vem decaindo de há muito. Em 1933, Walter Benjamim, num texto memorável, “Experiência e Pobreza”, parte da obra Magia e Técnica, Arte e Política (SP: Brasiliense, 1986, p.119) já nos adiantava: “Ficamos pobres. Abandonamos uma depois da outra todas as peças do patrimônio humano, tivemos que empenhá-las muitas vezes a um centésimo do seu valor para recebermos em troca a moeda miúda do ‘atual’. A crise econômica está diante da porta, atrás dela está uma sombra, a próxima guerra”. Hoje, a guerra de metade que come contra a outra que passa fome, que se desespera, que têm os filhos arrancados dos braços pela maldade dos que estão a serviço ou representam a metade que pode. Essa metade que pode não é mais representação numérica, é expressão de concentração de riqueza, de meios e de poder, a minoria que manda. A violência nem sempre é vista como tal, ela encrustou-se na cultura de violência invisível sobre as massas, com nos lembra Theodor W. Adorno, em texto de 1947: “A unidade visível de macrocosmo e de microcosmo mostra aos homens o modelo de sua cultura: a falsa identidade do universal e do particular. Toda a cultura de massa em sistema de economia concentrada é idêntica...Os dirigentes não estão mais tão interessados em escondê-la; a sua autoridade se reforça quanto mais brutalmente é reconhecida...A verdade de que nada são além de negócios lhes serve de ideologia”. Assim a desgraça vira negócio, que se chama “higienização da pobreza”. Foi assim quando o Rio de Janeiro derrubou os morros e afastou os pobres para as favelas. São Paulo seguiu o mesmo processo e hoje, ao cavar a terra para uma estação de metrô, se reencontra com a arqueologia da pobreza e da negritude, na “Encruzilhada da Macumba”. Falo desses dois lugares porque neles se concentra o poder econômico e político do país e serve de imitação para os demais. Confirma-se, assim, que os excluídos deixam marcas, mas o seu sofrimento, afastamento para periferia e até a sua extinção, quando não convém incluí-los, não deixa nenhuma marca de sentimento que enalteça a experiência de humanidade dos que podem.

Autor: Dr. Walmir de Albuquerque Barbosa Jornalista Profissional. Professor Emérito e ex-reitor da Universidade Federal do Amazonas. Manaus (AM), 24/02/2023. *Toda sexta-feira publica no site EPCC suas Crônicas do cotidiano. Confira na obra "Trajetórias culturais e arranjos midiáticos" (2021) seu capítulo "Comunicação, Cultura e Informação: um certo curso de jornalismo e vozes caladas na Amazônia".

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