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  • Walmir de Albuquerque Barbosa

Crônicas do cotidiano: “Minha experiência com a Faria Lima”

Tenho uns “caraminguás” na poupança, mas não sou rentista. Vivo do resultado dos meus sessenta e cinco anos de trabalho efetivos, dos setenta e três que tenho de idade; cinquenta dos quais como professor; do ócio de fazer crônicas; e, com a Graça de Deus e dos unguentos, que aliviam as dores do corpo cansado. Como não sou ingrato, vivo também, recebendo o carinho dos que gerei e dos que convivi com afeto, em muitas jornadas. Para os que não me conhecem pessoalmente, sou uma alma inquieta, filho, em segunda geração, de retirantes nordestinos, “arigós”, como são pejorativamente chamados. Até esta linha, não há novidade nenhuma nessa nesga de pretensa biografia que possa interessar, pois aqui, os nortistas raiz, que não têm sangue de arigó, de índio ou dos dois, ou renegaram as origens familiares e incluíram um sobrenome estrangeiro, desses que passaram pelos nossos portos rapidamente ou, ainda, inventaram um nome “estrambólico” e podem ser considerados “metidos a besta”. Mesmo entre as famílias emigradas de longe, que casaram entre si para preservar o “sangue”, o nome, a herança e os privilégios, contam-se as “escorregadinhas” e as “tentações demoníacas”, coisas da condição humana ou do amor desbragado e à primeira vista, que nem sempre enxerga a cabeça chata ou essa voz que nos condena ao preconceito ou até mesmo os nossos próprios preconceitos, que nos levam ao orgulho de ser diferentes dos outros, porque tem isso, também, na hierarquia das pretensas supremacias raciais. Não pensem que me perdi nos devaneios da raça e das regionalidades vãs, mas essa moldura do parágrafo acima foi para ilustrar as razões pelas quais gosto de calçar alpargatas. E hoje, por mais caras que sejam, quem as usa, não sei se por causa do formato dos pés ou das alpargatas em si, não deixa de expressar um certo “look” nordestino denunciador. E aí começa a minha estória. Morei em São Pulo, um bom tempo, quando fazia o mestrado e o doutorado na ECA/USP. Já Professor da Universidade Federal do Amazonas e bolsista da CAPES (nos tempos em que esta pagava a bolsa em dia), tinha conta bancária em uma Agência do Banco do Estado do Rio de Janeiro (BANERJ), na hoje famosa Avenida Faria Lima, por onde recebia meus proventos ao fim de cada mês. Como morava perto do Largo de Pinheiros, a agência era pertinho de casa, calcei minhas alpargatas, pus minha camisa de tergal (estávamos no ano de 1976), e fui ao Banco. Naquela época, tudo era analógico, não tinham inventado o PIX, usava-se cheque administrativo, ordem de pagamento ou transferência via FAX, a mais rápida e avançada tecnologia nas relações bancárias para trazer o dinheiro de uma agência para outra, dentro ou fora do mesmo Estado. Ao conferir o saldo bancário, no caixa, que não era eletrônico, verifiquei que o banco não havia feito a transferência automática dos valores depositados em minha conta em Manaus, para a Agência BANERJ Faria Lima. Dirigi-me, então, a uma senhora, indicada pelo caixa, para providenciar a tal transferência a que tinha direito. A tal senhora, do alto de seus saltos, olhou-me de cima abaixo e quando deu de olhos com minhas alpargatas, quase virando as costas para mim, perguntou-me, com ar de deboche: “o senhor tem saldo em conta para pagar o Fax, não é de graça!”. Confesso que perdi a compostura e reagi exigindo respeito, mas sei que de repente me vi cercado por agentes de segurança e o gerente me pediu calma; e aí fiquei sabendo que todas as agências dos bancos estatais, eram, também, protegidas pela Lei de Segurança Nacional e eu poderia ser visto como um “terrorista”. Depois das devidas explicações, não fui levado ao DOPES, mas ficou a lição: até hoje, minha esposa, quando digo que vou ao banco, mesmo bem longe da Faria Lima, ela lembra: “não vá com essas suas alpargatas e vista uma roupa melhor!” Como podemos ver, a Av. Faria Lima já era predestinada a ser o centro do poder financeiro do país, naquela época de triunfo da Av.Paulista. Começou achacando os que usavam alpargatas e hoje dita as normas para toda a nação. Até parece que aqueles que não assinarem a tal “carta”, submetendo-se aos seus desígnios, não se criam no solo deste país. Eu sobrevivi!

Autor: Dr. Walmir de Albuquerque Barbosa Jornalista Profissional. Professor Emérito e ex-reitor da Universidade Federal do Amazonas. Manaus (AM), 21/10/2022. *Toda sexta-feira publica no site EPCC suas Crônicas do cotidiano. Confira na obra "Trajetórias culturais e arranjos midiáticos" (2021) seu capítulo "Comunicação, Cultura e Informação: um certo curso de jornalismo e vozes caladas na Amazônia".


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