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  • Walmir de Albuquerque Barbosa

Crônicas do cotidiano: “Não há bota velha que não encontre um pé cambaio”

Não estranhe o título cara leitora e caro leitor, já que o desfecho da crônica parece imprevisível. O que vem a ser um pé cambaio? Diz o Aurélio que esse termo se refere a quem “tem pernas tortas; cambeta”. Não vamos ficar no politicamente correto nem no bullyng e sim no entendimento dado por Machado de Assis, de quem “furtei” o título, lendo uma crônica quase conto, intitulada “Filosofia de um par de botas”, datada de 23 de abril de 1878 (Obras Completas - Miscelânea, p. 989-993. RJ: Ed. José Aguilar, 1962), que narra a trajetória de um par de coturnos (botas) que repousam em uma praia deserta: “um e outro tinham a sola rota, o tacão comido do longo uso, e tortos, porque é de notar que a generalidade dos homens camba, ou para um ou para o outro lado”.


Em Machado tudo significa, notemos a conotação de “generalidade dos homens”, que pende para um lado ou para outro. E vejam: em tom de crônica, o autor inicia “levando o estômago”, após o jantar, para “digerir em paz” em uma praia deserta, enquanto o cérebro vai remoendo as coisas do cotidiano. Em meio a essa reflexão, ele descobre o par de botas, ali ao seu lado, e “começa a conjeturar qual teria sido a vida daquele produto social”. E, a partir desse momento, já não é mais o cronista que pensa e fala, são as botas tecendo um diálogo entre si e como personagens de um conto, falando sobre as “vicissitudes humanas”. O diálogo expressivo de uma bota com a outra é que dá sentido e beleza à concepção de vida machadiana: elas tagarelam sobre fatos ocorridos, desde que estavam na vitrine da rua do Ouvidor (no Rio de Janeiro). As pessoas as admiravam, as experimentavam e por um motivo ou outro, muito particular, não as compravam. Até que um dia são adquiridas por um tal Sr. Crispim, na avaliação delas um homem de bem, recatado, mas por causa de um incidente social, num jantar na casa de um tal Comendador Plácido, quando o Sr. Crispim, tentando assediar uma viúva convidada, roça as suas botas nas botas da viúva e é rechaçado. Para esquecer o incidente, o galanteador frustrado em seu intento, por punição, doa as botas a um “procurador de poucas causas”. E dizem as botas: aí começa toda uma história de sofrimento e desgaste que as deixou rotas, furadas e abandonadas na praia, depois de terem “rolado todos os degraus da escala social”, várias vezes servido a tantos pés.


Sentindo-se desprezadas, queixam-se da sua sina, até que a Bota Direita indaga pelas botinas da viúva. Em resposta, diz a Bota Esquerda, arriscando um julgamento moral: “quem sabe lá! Talvez outras botas conversem com outras botinas...Talvez: é a lei do mundo; assim caem os Estados e as instituições. Assim parece a beleza e a mocidade. Tudo botas, mana; tudo botas, com tacões ou sem tacões, novas ou velhas; direitas ou acalcanhadas; lustrosas ou russas, mas botas, botas, botas!” Parecia o fim, mas eis que chega um Mendigo, pede uma esmola e é atendido pelo contista. Ao dar de olhos com as botas e mostrar os pés descalços e esfolados, o Mendigo as pede para si: “foi um anjo que as pôs aqui”. Em meio a tudo que parecia impossível, depois do abandono, aparece alguém que nelas vê ainda uma utilidade. Moral da estória machadiana é dado pela Bota Direita: “Ah! mana! Esta é a filosofia verdadeira: - Não há bota velha que não encontre um pé cambaio”.


Passeando pelas mídias do mundo e em especial as do nosso Brasil, assisto assustado: as “motociatas” e “passeatas” como micaretas fora de época; federações partidárias de esquerda com direita; PEC Kamikaze, PEC dos Parlamentares/Embaixadores; Apurações de Assédios Morais e Sexuais no governo; pedidos de vista e de vistas grossas. Tudo inusitado e em turbilhão. Penso comigo mesmo e com o meu fígado: - Ao contrário do filosofar de Machado de Assis, nesse Brasil de hoje, que cultua o “retrovisor”, o que vemos são muitos “pés cambaios” à procura de botas velhas. Uns as encontrarão, outros não!

Autor: Dr. Walmir de Albuquerque Barbosa Jornalista Profissional. Professor Emérito e ex-reitor da Universidade Federal do Amazonas. Manaus (AM), 8/7/2022. *Toda sexta-feira publica no site EPCC suas Crônicas do cotidiano. Confira na obra" Trajetórias culturais e arranjos midiáticos" (2021) seu capítulo "Comunicação, Cultura e Informação: um certo curso de jornalismo e vozes caladas na Amazônia".


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