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  • Walmir de Albuquerque Barbosa

Crônicas do cotidiano: O Flâneur, o Carrossel e a Inflação

É com modéstia e cuidado que ouso tomar Walter Benjamin (1892-1940) como companheiro de jornada. Benjamin é sempre uma inspiração para quem vagueia pelo cotidiano procurando a compreensão das coisas que desfilam à sua frente, aparentemente, de uma forma desconexa. Umas perdem a aura, outras ganham sentido, mas todas são partes carentes do mesmo mundo a procura de entendimento. Espírito inquieto e observador, descreve, comenta e critica. Uma flecha que dói e anestesia. Dele, tomei de empréstimo as palavras e as ideias que adornam o nosso título. O flâneur é um tipo humano que tem registro na literatura desde o século XVII e, para simplificar a origem, resulta do processo de urbanização e da criação de espaços públicos. Entre nós, bem o descreveu Luis Fernando Veríssimo, na crônica “O Popular” (que também dá título ao livro), como aquele que tudo vê, mas sem comprometimento. Em Baudelaire, analisado por Benjamin, “Baudelaire e a Modernidade”, “a rua transforma-se na casa do flâneur”, e este a alma de Paris do sec. XIX. Ele é, também, aquele que procura as imagens, “onde quer que elas morem”, tanto na alegria quanto no lado sombrio do viver. Mais adiante, na página 210, em “O regresso do flâneur, comentando a obra de Franz Hessel (Passear em Berlim),Walter Benjamin retoma, com sentimento comparativo, a outra visão desse tipo humano, diante do estado de reconstrução da Alemanha do pós I Grande Guerra, já em dificuldades financeiras; e uma Berlim com seus prédios do antigo fausto e ainda de pé ou em reconstrução, avenidas e praças, para onde afluem multidões na busca da sobrevivência, mas deixa ver os ornamentos, lembranças de um tempo bom e diz: “É aqui (em Berlim) e não em Paris, que melhor compreendemos como o flâneur pôde se afastar do passeante filosófico para assumir os traços do lobisomem inquieto e à deriva na selva social, que Poe (Edgar Allan Poe) fixou para sempre em ‘O homem na multidão’”.


Da “Rua de Mão Única, Infância Berlinense:1900” apanhei dois verbetes, embora essa obra inteira seja um primor a tratar das coisas do cotidiano. No verbete “O Carrossel”, descreve uma vida inteira, num intervalo de tempo de operação do brinquedo; desde o momento em que a criança manifesta medo em aceitar o passeio, quando se desapega dele e da insegurança e pensa que é forte e poderosa, ao som do realejo e da magia que emana do centro do Carrossel. Quando o brinquedo começa a parar, tudo volta à situação inicial, “torna-se terreno inseguro” novamente. Para o autor, nos tempos de criança, a mãe era a “estaca” que protegia, e que não existe mais. Já no verbete “Panorama Imperial: I, Viagem pela inflação alemã”, retrata a decadência da República de Weimar, que abriria caminhos para a ascensão do Nazismo, quando se fala “que a pobreza não envergonha ninguém” e “quem não trabalha, não come”; justificativas indecentes dos políticos desalmados para livrar-se das culpas do estado da arte política. E ele rebate: “o que envergonha é essa penúria em que milhões já nascem e centenas de milhares são apanhados, caindo na pobreza”.


Em dois anos de pandemia nos tornamos voyeurs dos espetáculos midiáticos e das redes sociais; e neles flanamos eletronicamente pelo mundo globalizado num Carrossel enfeitado pela sociedade do consumo, que instrumentalizou as compras on line. O Carrossel vai parando, as máscaras vão caindo e nos deparamos com uma realidade de “eterno retorno”, sem as “estacas” para nos agarrarmos. As pessoas vagam em supermercados e armazéns como o flâneur decadente de “o homem na multidão”, de Edgar Allan Poe, olhando as gôndolas dos supermercados com um olhar triste e poucas coisas nos carrinhos, devido a inflação galopante e o desemprego, além das declarações cínicas de governantes. Lá fora: a marcha cinzenta da extrema direita; ecos de bombas e os escombros da guerra; o imperialismo em barris de petróleo; e a insensatez, na forma de medalhas, coladas em peitos rotos, por merecidos serviços de escárnio aos povos originários.

Autor: Dr. Walmir de Albuquerque Barbosa Jornalista Profissional. Professor Emérito e ex-reitor da Universidade Federal do Amazonas. Manaus (AM), 18/3/2022. *Toda sexta-feira publica no site EPCC suas Crônicas do cotidiano. Confira na obra" Trajetórias culturais e arranjos midiáticos" (2021) seu capítulo "Comunicação, Cultura e Informação: um certo curso de jornalismo e vozes caladas na Amazônia". Veja, também, sua entrevista no Programa Comunicação em Movimento 09 do grupo de pesquisa EMERGE- https://www.youtube.com/watch?v=kpu-HtV6Jws


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