Crônicas do cotidiano: “Protocolo, Cerimonial e o Declínio do Homem Público”
O protocolo é entendido como um conjunto de regras, normas e procedimentos que devem orientar ou reger a realização de eventos oficiais ou oficiosos, que resultarão em decisões de repercussão geral. É entendido, também, como as formalidades necessárias na regulação das relações entre pessoas ou grupos (regras de etiqueta); registro de atos públicos e outras acepções, dispensáveis para ao entendimento de nossa prosa. Por Cerimonial, entendemos a adequação dos protocolos necessários às especificidades de cada evento cerimonioso, formal. Cada evento comporta protocolos diferenciados, que precisam ser ajustados para que o rito se realize a contento. Toda cerimônia é um ritual e, como tal, tem regras estabelecidas para evitar a “quebra de protocolo”.
A sacralidade/dessacralização, o encantamento/desencantamento do mundo, a hierarquia, a aura da autoridade e da reverência, estão todos ligados aos protocolos, aos cerimoniais e aos ritos, sejam eles de passagem, de confirmação, de transformação ou de consubstanciação. São, ao mesmo tempo, manifestações religiosas, culturais e de agregação social e política. Nas relações de poder, fazem parte daquilo que o Ex-Presidente José Sarney cunhou como “Liturgia do Cargo”, ao referir-se aos protocolos, à ritualística e ao decoro a que está submetido o exercício da Presidência da República e dos demais poderes do Estado, nos termos da Constituição. O que significa dizer: não levar a sério a liturgia do cargo é desmerecê-lo ou exercê-lo fora dos limites convencionais e até constitucionais; é fugir, portanto, do preceito weberiano, de que os governantes só podem se pautar pela ética da responsabilidade.
Hannah Arendt, em “O que é política”, ensina-nos: “a política surge no entre-homens; portanto, totalmente fora dos homens. Por conseguinte, não existe nenhuma substância política original. A política surge no intra-espaço e se estabelece como relação” (p. 23). E o que ela vai nos dizer mais adiante é que, diferentemente da Antiguidade, onde nasce uma democracia de homens livres sobreposta à escravidão daqueles que deveriam prover o que é necessário à vida, a política não é mais um privilégio dos que vivem do ócio; a política, hoje, deve ser feita e cultivada por todos. Daí a necessidade de regras para que não destruamos uns aos outros, como percebeu Hobbes, no início da modernidade.
Em “O Declínio do Homem Público: as tiranias da intimidade”, Richard Sennett, ao tratar da “usurpação do palco público pela cena psíquica privada”, registra a dessacralização calvinista, que rompe com a ritualística eclesial; depois, o desprezo pelos convencionalismos, dando lugar ao narcisismo como regra, a partir do século XIX. “Falar do fim da vida pública é primeiramente falar de uma consequência, extraída de uma contradição na cultura do século passado (século XIX). A personalidade em público era uma contradição em termos: levada às últimas consequências, destruía o termo público. Por exemplo, tornara-se lógico, para as pessoas, pensar que aqueles que podiam ativamente expor suas emoções em público, fossem artistas, fossem políticos, eram homens de personalidade superior e especial. Tais homens deviam poder controlar, mais do que incluí-la em sua interação, a plateia diante da qual se apresentavam... a plateia perdeu a fé em si mesma para poder julgá-los; tornou-se espectadora, mais do que testemunha. A plateia perdera, assim, um sentido de si mesma como força ativa: como público” (p. 319-330). Sobrou o narcisismo, o personalismo e o autoritarismo, que, na política, ajudou no surgimento dos líderes autoritários que nos levaram ao fascismo e, nas artes, aos olimpianos, dos quais tratou Umberto Eco. E, no mundo digital, aos influenciadores, com milhares de seguidores.
Cá entre nós, aquela cerimônia “mal-ajambrada” do dia 6, no Palácio do Planalto, para anunciar a proposta do governo sobre a taxação dos combustíveis, explica muito desse declínio da política e dos homens públicos no nosso país. A encenação falou por si mesma!
Autor: Dr. Walmir de Albuquerque Barbosa Jornalista Profissional. Professor Emérito e ex-reitor da Universidade Federal do Amazonas. Manaus (AM), 10/6/2022. *Toda sexta-feira publica no site EPCC suas Crônicas do cotidiano. Confira na obra" Trajetórias culturais e arranjos midiáticos" (2021) seu capítulo "Comunicação, Cultura e Informação: um certo curso de jornalismo e vozes caladas na Amazônia". Veja, também, sua entrevista no Programa Comunicação em Movimento 09 do grupo de pesquisa EMERGE- https://www.youtube.com/watch?v=kpu-HtV6Jws
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