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Walmir de Albuquerque Barbosa

Crônicas do cotidiano: “Valei-me São Francisco de Assis”

Quem aguenta o ritmo das emoções em tempo real e tem a obrigação de escolher, dentre elas, aquela que será o centro das suas atenções? Alvorecia, corri para a máquina de escrever, meu computador, para não perder o “insight”, mas o calendário falou mais alto: levantei-me, como de costume, liguei a TV, fui até a janela para tomar um ar da brisa morna do nosso verão amazônico. Infelizmente, nossas manhãs estão sempre acompanhadas da fumaça intensa, que viajou vários quilômetros em meio a outras queimadas e estacionou à minha frente, impedindo-me de avistar e contemplar o Rio Negro em sua viagem perpétua ao encontro do Rio Solimões. Que, num espetacular abraço, formam o Rio Amazonas. É tempo de manga, as mangueiras carregadas de frutos tornam-se também a morada provisória das maritacas em festa, confirmando que era 4 de outubro, dia consagrado à São Francisco de Assis, de quem eu e milhões de outras pessoas se sentem devotos ou simpatizantes. Inicio os trabalhos e aqui estou, sentado, frente ao computador, “estatelado” ao ouvir, na TV, que esqueci de desligar, o discurso do “Zema”, governador reeleito de Minas Gerais, no Planalto, declarando “apoio irrestrito ao Presidente”, no segundo turno das eleições. Uai! O Carlos Drummond não disse em seu antológico poema José que “Minas não há mais”!? Agora já não sei o que farei com os livros que tirei da estante, ainda no domingo, pensando que me ajudariam na tarefa de cronista dependente das muletas intelectuais dos analistas políticos e dos clássicos que deram base às minhas visões de mundo, certas ou erradas. Selecionei-os logo após assistir na Televisão, no “Cercadinho do Palácio da Alvorada”, a entrevista do Candidato Bolsonaro, com um ar circunspecto, para demonstrar que obteve uma grande vitória, vestindo uma Camisa Preta, que lembrou-me as vestes das tropas de Mussolini, como pretende ganhar as eleições. Do meu lado direito, para desvendar essa má impressão, está “O Mestre”, de Santo Agostinho; do lado esquerdo, o “Discurso da Servidão Voluntária”, de Étienne de La Boétie; e a “Antologia Poética”, de Mario Quintana, sem mesmo saber que relação encontrarei entre eles, a não ser o desencanto e a esperança, que todos, em seus textos, nutrem pela humanidade.


“Gostaria apenas de entender como é possível que tantas pessoas, tantas aldeias, tantas cidades e tantas nações suportem por vezes um único tirano, que tem o poder que elas mesmas lhe dão; cujo poder de prejudicá-las é o poder que elas mesmas aceitam” (La Boéte [1530-63], p.16-17, SP: Editora Nós, 2016). Pelas “mariolas dos bons costumes”, milhares de eleitores parecem ter esquecido os gritos dos que morreram por falta de vacina e de oxigênio; das ameaças à supressão dos direitos constitucionais pelos quais tanto lutamos; das balas perdidas disparadas contra inocentes; das florestas queimadas que, quando de pé, alimentavam os Rios Voadores da Amazônia, que levam a chuva do Amapá ao Rio Grande do Sul. Os destruidores de tudo parecem ter sido premiados, eleitos com milhares de votos. Aquelas palavras, ditas por quem nos ameaça, vestido com Camisa Preta, naquele cercadinho de uma propriedade que não é dele, é do povo, são sinais. Sinais, como nos diz Santo Agostinho: “embora alguém pretenda que ao pensarmos as palavras, falamos interiormente em nossa alma, apesar de não emitirmos som algum – ainda neste caso não fazemos mais que rememorar, pois a memória, a que estão inerentes as palavras, revolvendo-as faz vir ao espírito as próprias coisas, de que as palavras são sinais”. Pois é, Meu caro Quintana, como você disse no Soneto VII, “Rua dos Cataventos”: “Eu quero os meus brinquedos novamente!/ Sou um pobre menino… acreditai…/ Que envelheceu, um dia, de repente!”.

Autor: Dr. Walmir de Albuquerque Barbosa Jornalista Profissional. Professor Emérito e ex-reitor da Universidade Federal do Amazonas. Manaus (AM), 7/10/2022. *Toda sexta-feira publica no site EPCC suas Crônicas do cotidiano. Confira na obra "Trajetórias culturais e arranjos midiáticos" (2021) seu capítulo "Comunicação, Cultura e Informação: um certo curso de jornalismo e vozes caladas na Amazônia".



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